Um mês de Carneiro. Dos pactos às "linhas vermelhas" com AD

No primeiro mês de liderança, José Luís Carneiro juntou vindos e desavindos na mesma direção, já traçou “linhas vermelhas” com uma AD com que ambicionava conseguir fazer pontes (era a voz moderada do PS), deu um passo ao lado no Orçamento do Estado (que inicialmente parecia querer viabilizar de caras) e outro na relação com o Governo da AD (que tem preferido outro “colo”). Mas antes de ir de férias vai reunir-se com Montenegro.
O maior desafio para Carneiro tem sido precisamente posicionar o partido no atual quadro político, em que vê a AD aproximar-se a passos largos do Chega, perdendo capacidade de influenciar a governação. Carneiro tem enviado cartas e propostas a Luís Montenegro e, ao mesmo tempo, avisa a AD que tem de escolher, porque o PS não está disponível para partilhar com o Chega o espaço para consensos: “Nunca o PS pode ser colocado ao nível de um partido que atenta contra os valores democráticos.”
Esta segunda-feira vai sentar-se com o primeiro-ministro em São Bento para uma reunião, na antecâmara da qual tem tentado pressionar a AD a virar-se para o PS. Ao mesmo tempo, dentro do seu partido, começa a sentir pressão para um afastamento de acordos com a direita que governa. Carneiro tem-se mostrado hesitante em traçar já essa linha. Numa noite endurece o discurso com a AD, mas na tarde seguinte envia uma proposta à mesma AD. O Observador passa em revista os primeiros 30 dias de Carneiro em cinco pontos.
Grupo de conselheiros de Carneiro “dava para formar vários governos” (metade já formou)
O PS aguardava com expectativa uma audiência com o primeiro-ministro onde José Luís Carneiro já tinha dito que queria pôr em cima da mesa matérias de regime, estando à espera da “iniciativa do Governo”. A reunião chega esta semana, mesmo à beira do tempo de férias e quando o clima entre AD e PS não podia estar mais tenso.
Os sinais não têm sido da maior aproximação entre os dois partidos que nos últimos 50 anos rodaram no poder e os socialistas têm aproveitado para acusar a AD de “ter aterrado no colo de André Ventura” — como disse o líder parlamentar Eurico Brilhante Dias no debate do Estado da Nação ainda este mês. “O ‘não é não’ – tão repetido na campanha eleitoral – passou à História“, escreveu o próprio secretário geral do PS num artigo de opinião no Público, a propósito das alterações às leis que afetam imigrantes.
Ainda assim, no dia seguinte a ter endurecido o discurso — linha que inaugurou à saída de uma reunião da Comissão Política Nacional do PS onde foi pressionado a cortar com a AD –, José Luís Carneiro voltou a estender a mão a Montenegro com uma proposta para criar uma unidade para coordenar emergências hospitalares. A relação que pretende ter com a AD ainda parece pouco consolidada e Carneiro pouco convencido de que o corte seja o caminho para a sobrevivência política (a sua e a do PS).
A dúvida tem estado entre lutar por continuar a ser considerado em matérias de soberania ou fazer um corte total com a AD. Na reunião da Comissão Política Nacional, Carneiro ouviu alguns dos socialistas menos alinhados com a sua direção, como Pedro Silva Pereira ou José António Vieira da Silva, defenderem que o PS aproveitasse o embalo da parelha AD/Chega na imigração para vincar o seu lugar como líder da oposição, afastando-se de acordos com a AD.
Carneiro pressionado no PS a afastar-se da AD e empurra batata para Montenegro
À saída da reunião, Carneiro mudou o tom: “O primeiro-ministro tem de decidir com quem quer construir as soluções de Estado, as soluções de soberania. E tem que ter consciência histórica e memória do que significa o PS, do que significa o PPD e do que significa o CDS.” Passou da voz socialista que procurava “consensos democráticos” com a AD — essa moderação até tinha recebido elogios do líder parlamentar Hugo Soares, por oposição a Pedro Nuno Santos –, para uma voz mais grossa com a coligação da direita.
Ainda assim, os gestos continuam sem acompanhar o tom e Carneiro mantém a mão estendida para um acordo estratégico na Defesa, que Montenegro já disse que terá de incluir “todos” e o desejo que isso possa acontecer para outras áreas de soberania (em que ainda não avançou com propostas concretas). Continua a aguardar um sinal de Montenegro para definir a sua linha.
Orçamento. Ante-promessa de viabilização tremidaEscaldado por uma negociação do Orçamento, no verão do ano passado, que tanto desgastou a liderança de Pedro Nuno Santos, José Luís Carneiro tentou estancar uma nova vaga de pressão sobre a posição do PS sobre a proposta que o Governo entregará a 10 de outubro. Pôs de parte negociar a proposta do Governo, assumindo que só se pronunciaria sobre ele depois de o conhecer.
A “abertura para a viabilização” foi manifestada a um mês das eleições diretas do PS, logo depois da estrondosa derrota nas legislativas que deixou o PS no terceiro lugar no Parlamento: “Ao viabilizar o programa do Governo, em princípio, deve-se viabilizar o instrumento para pôr em prática o programa do Governo, que é o Orçamento”. Essa porta continua aberta, embora o caminho para o PS a atravessar sem ter de baixar a cabeça esteja mais estreito.
Nessa mesma altura, Carneiro definiu que a proposta teria de respeitar a forma como o PS “olha para o SNS, o sistema de pensões, para a segurança social e a escola pública”. Ainda no último sábado, perante a reforma da legislação laboral apresentada pelo Governo, o socialista disse ser contra propostas que considera virem “deitar por terra a agenda para o trabalho digno e procurar desvalorizar a contratação coletiva”. São “linhas vermelhas que o PS não pode aceitar” disse sobre a matéria laboral — e, ainda que essa discussão decorra em paralelo, dificilmente não afetará politicamente a discussão do Orçamento.
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A sombra de uma liderança a prazo continua a pesar sobre os ombros de Carneiro que tudo tem feito para agradar a gregos e a troianos, ou no caso, a costistas, pedronunistas e outros istas do partido. Um retrato evidente disso mesmo é a direção nacional que compôs e onde senta quinzenalmente à mesma mesa elementos dessas várias alas do partido.
Manter a oposição dentro do seu círculo de decisão foi um dos caminhos que privilegiou, sabendo que ocupa um dos lugares mais espinhosos da política nacional no momento. O desconforto com a ideia de uma liderança minada por todos os lados ficou exposto logo na apresentação da sua candidatura, em junho, quando fez questão de encher o seus discurso de avisos internos, pedindo unidade ao que possam ter “aspirações individuais próximas ou longínquas”.
Avisou várias vezes, ao longo dessa mesma intervenção, que ninguém “perdoará” o PS se ficar “agora a olhar para o umbigo ou se se entretiver a golpear reciprocamente a nossa credibilidade e as nossas qualidades”. Admitia a necessidade de uma “reflexão” pós-legislativas, mas que ela não seja confundida “com tentações de ajustes de contas internos ou com cedência a tentativas de aproveitamento por parte dos nossos principais opositores”.
Carneiro tenta “diversidade”, entre muitas negas. E cria conselho estratégico
Nessa altura já se sabia que seria o candidato único à liderança, mas no caminho até aí ficou claro quem congeminou, desde o primeiro momento, para tentar um candidato alternativo a Carneiro. Todos os elementos desse núcleo, Fernando Medina, Mariana Vieira da Silva, Duarte Cordeiro e Ana Catarina Mendes, foram convidados para integrar a nova direção, mas só Ana Catarina Mendes aceitou. Vieira da Silva integrou a direção da bancada, Medina e Cordeiro preferem ter assento a outro nível, como por exemplo a Comissão Política Nacional, o órgão de direção alargado onde se produzem decisões políticas e operacionais de peso no partido — aquela onde, normalmente, mais vozes críticas se ouvem.
Nas entrelinhas de todas estas movimentações fica clara a existência de um grupo específico de pressão, com vozes que podem aparecer dissonantes e a preparar uma frente alternativa. Mas o tempo para se posicionarem poderá depender mais do contexto político do país do que do estilo de liderança de Carneiro. A ocasião política fará o intruso nesta liderança.
Reorganizar. Com vozes dissonantes, ex-governantes e sociedade civilO resultado desse ambiente tenso acabou por ser uma direção diversa, com nomes que vão de Francisco Assis e Sérgio Sousa Pinto (que apoiaram Pedro Nuno em 2023, contra Carneiro), a João Torres e Pedro Costa (pedronunistas), passando por Ana Catarina Mendes ou Jamila Madeira (antigas rivais). Mas Carneiro também levou nomes da sua confiança, como André Moz Caldas, Filipe Santos Costa, Luís Parreirão, Inês de Medeiros ou Maria Antónia Almeida Santos.
Entretanto, no que a reorganização interna diz respeito, o PS continua com a tão prometida reflexão interna pós-legislativas por fazer. Por causa das autárquicas ficou atirada mais para a frente, bem como o congresso do partido que ainda continua sem data marcada. Pelo meio, Carneiro quer também mostrar capacidade de abrir o partido para lá das paredes da sede nacional do Largo do Rato, recuperando à ligação ao território que, a primeira análise socialista às legislativas classificou como perdida nestas eleições.
A anterior direção, liderada por Pedro Nuno Santos, planeava para este ano o lançamento dos novos Estados Gerais, um modelo do guterrismo (que noutras áreas, teve outros nomes: José Sócrates, por exemplo, chamou-lhe “Novas Fronteiras”) que pretendia envolver a sociedade civil e não só na elaboração de políticas que pudessem integrar o futuro programa eleitoral do PS. O objetivo saiu furado por causa da antecipação das legislativas e agora Carneiro avança com a ideia de sempre, mas com novo nome.
Esta terça-feira apresentou um novo organismo de aconselhamento da direção, o Conselho Estratégico, que pretende reunir de três em três meses. Neste grupo de 94 figuras, quase metade passou por governos socialistas — há também um que integrou um governo PSD/CDS, Filipe Lobo d’Ávila, antigo vice-presidente do CDS e entretanto desfiliado do partido. Figura ao lado de nomes como o do o ex-líder Eduardo Ferro Rodrigues, António Vitorino, Pedro Siza Vieira, Fernando Medina, Augusto Santos Silva, Paulo Pedroso, Maria de Belém, António Correia de Campos, Eduardo Cabrita, Alexandra Leitão ou Maria de Lurdes Rodrigues.
Já entre a sociedade civil que Carneiro quer chamar à participação política estão nomes como Germano de Sousa, CEO do grupo com o seu nome, o cantor Fernando Tordo (cantor), Isabel Soares (diretora do Colégio Moderno e filha de Mário Soares, António Rebelo de Sousa (economista e irmão do atual Presidente da República), Luís Teixeira, Carlos Tavares (empresário), Aida Tavares (ex-diretora artística do CCB, demitida este mês), Isabel Carvalhais (professora universitária e ex-eurodeputada) ou José Manuel Castanheira (cenógrafo).
Neste grupo garantiu ter nomes para construir “não um, mas vários governos”. Quanto ao tempo para chegar a esse ponto, ninguém arrisca (ou se arrisca, atira para longe).
Gestão de problemas. O teste de algodão autárquico e presidenciais em auto-gestãoAo virar o verão estará o grande teste para o PS, aquele com que parte do partido sonha poder contar para se reposicionar como líder da oposição: as autárquicas. Mas na margem desse Éden está o risco do Inferno de um novo desaire eleitoral e é nesse limbo que os socialistas agora seguem, apostando tudo no terreno que nos últimos 12 anos lhe tem garantido o título de maior partido autárquico.
Essas eleições são o verdadeiro teste do algodão para o estado de coisas no PS, depois do que aconteceu nas legislativas. E a sensibilidade do tema é tal que tem servido para afastar do caminho quaisquer eventuais empecilhos políticos, sejam eles disputas internas acaloradas ou divisões presidenciais. Foi assim quando Carneiro se posicionou para correr à liderança e os autarcas recandidatos que se preparavam no terreno eleitoral pressionaram internamente para que não existisse uma luta interna que pudesse prejudicar a luta autárquica.
Carneiro acabou por tirar partido da existência dessa alta sensibilidade. Ao antecipar a sua candidatura, acabou por ser o candidato único à liderança, dados os receios com as consequências que uma disputa de liderança em cima de autárquicas podia acarretar (com listas divididas entre duas candidaturas à liderança, enfraquecendo objetivos eleitorais).
Voltou a usar o mesmo tema para empurrar para a frente outro problema: a decisão do PS sobre quem apoiar nas presidenciais. A manobra permitiu-lhe ganhar tempo enquanto no terreno se clarificam candidaturas, numa altura em que o quadro estava a ficar novamente negro para o PS com vários elementos, incluindo o antigo líder Ferro Rodrigues, a desejarem e apoiarem uma candidatura independente (António Sampaio da Nóvoa), quando um ex-líder do partido já está oficializado na corrida (António José Seguro).
O tempo passa e Nóvoa não se define, deixando, por agora, o terreno simplificado para o líder socialista, com o partido a aproveitar o vazio para se ir direcionando para Seguro. Deixar as presidenciais em auto-gestão tem permitido aliviar a carga sobre o secretário-geral que, quando chegar ao tema, pode já tê-lo resolvido — ao mesmo tempo, a inação pode valer-lhe críticas internas num futuro mais ou menos próximo.
observador